Mário Amaral Souza era filho de Antonia Estanislau do Amaral e neto de José Estanislau do Amaral, um rico fazendeiro cafeeicultor paulista, conhecido como “o milionário”, que construiu o Teatro São José em São Paulo (atual prédio do Shopping Light, no centro da cidade). Além de violonista e compositor, Mário Amaral foi também violinista e atuou ao lado de Souza Lima nos cinemas da cidade. Mário Amaral conheceu o jovem pianista João de Souza Lima em uma das reuniões na Casa Sotero de Souza, editora de partituras e ponto de encontro de músicos na região central de São Paulo. Foi Mário que apresentou Souza Lima à sua prima, a célebre pintora Tarsila do Amaral, que passou a estudar piano com ele[1].
Em 1920[2], uma composição sua foi notícia na revista A Vida Moderna: “Céu Azul é o nome da linda valsa com que nos mimoseou o sr. Mário Amaral Souza, e a qual muito agradecemos” e, em 1921, sabe-se de um concerto seu em Campos do Jordão através de uma nota na revista A Cigarra[3]. Em 1922, Menotti Del Picchia descreveu um sarau no célebre atelier da artista Tarsila do Amaral. Naquela ocasião, ele, Freitas Valle, Mário de Andrade, Tarsila e Anita Malfatti se reuniram para escutar o violonista Mário Amaral. Menotti contou com riqueza de detalhes as músicas, composições próprias, e as reações da pequena e seleta audiência. Trata-se de um importante relato que coloca Mário Amaral no centro da intelectualidade modernista paulistana, em um claro deslocamento da posição de instrumento de malandro comumente atribuída ao violão[4].
Em 1924, ele mereceu um grande artigo escrito por Eustáchio Alves, violonista que atuou no Rio de Janeiro e foi aluno de Josefina Robledo[5]. Alves, no texto que recebeu o título “Um Grito D'alma: Impressões sobre o violonista brasileiro Mário do Amaral e Souza”, expressou sua admiração pelo instrumento. Dirigindo-se a Amaral, iniciou uma digressão sobre sua própria ligação com o violão: “você não pode calcular a minha satisfação em ouvi-lo e, para avaliá-la, mister se faz que lhe conte um pouco de história antiga”. Ao citar o período em que foi aluno de Josefina Robledo, Alves comparou Amaral à violonista espanhola:
A princípio meu entusiasmo cresceu, mas, dadas as dificuldades da escola, senti que outros discípulos de d. Josefina esmoreceriam. Quanto a mim, persisti e persisto no propósito de vencer as dificuldades, mas me julgava isolado. Conto-lhe isso, para você avaliar a minha surpresa lhe ouvindo, pois tive a mesma impressão da tarde em que pela primeira vez admirei a nossa incomparável maestra. Ouvi aqueles mesmos acordes cheios, aquela nitidez, clareza, expressão, técnica, enfim, vi alguém que executa e sente o violão como ele deve ser executado e sentido. Creio que foi essa a impressão daquela seleta sociedade em que passamos horas agradabilíssimas.
A minha, porém, foi a maior de todas, pois verifiquei haver em São Paulo alguém que, preso ao companheiro de minhas mágoas e alegrias, sabe transmitir, como muito poucos, aquilo que sente a sua alma de artista. Não lhe notei um só defeito, e suas composições podem figurar, sem favor nenhum, dentre as dos melhores autores.
Depois de lhe ouvir, sei que já há violonistas no Brasil.
Temos também instrumentos ótimos, como esse de Pistoresi, que nada fica a dever aos Arias, antes, pelo contrário, notei nele maior sonoridade e doçura. Resta agora que você não esmoreça e escreva suas composições para que elas sejam vulgarizadas[6].
Mário Amaral utilizava um instrumento de Francisco Pistoresi, construtor de violões que iniciou sua atividade na cidade no final do século XIX e o articulista frisou a boa sonoridade do instrumento. Salienta-se, ainda, o pedido de Eustáchio a Amaral: “Resta agora que você não esmoreça e escreva suas composições para que elas sejam vulgarizadas”. Ainda em 1924, na Ariel Revista de Cultura Musical, ilustrando o artigo de Manuel Bandeira, A Literatura do Violão, há, além de uma reprodução de uma das guitarras do mestre do cubismo Pablo Picasso, uma foto de Mário Amaral[7], com a legenda: “admirável virtuose brasileiro do violão”. Pela foto pode-se dizer o violonista tinha conhecimento da postura dita “clássica”. Mário de Andrade era editor da revista e provavelmente foi o poeta paulistano quem incluiu a foto de Mário Amaral no artigo.
(em anexo jpg) Fonte: Ariel Revista de Cultura Musical (1924).
Entretanto, a mais curiosa menção sobre Mário Amaral veio do próprio Mário de Andrade, juntamente com o que parece ser o único resquício de sua obra: a melodia de uma valsa lenta chamada Saudosa, que o poeta paulistano registrou na segunda parte do Ensaio Sobre Música Brasileira (1928), em Exposição de Melodias Populares, com o seguinte texto sobre seu conterrâneo violonista:
Esta valsa em duas partes foi Mário Amaral que fez. Era músico a valer. Não estudou nada ou quasi [sic] nada e por essa felicidade conservava um cunho forte de Brasil dentro de si. Ficou hético, trocou o violino prejudicial pelo violão e morreu moço. No violão chegou a possuir um toque de virtuosístico. Só executava composições dele mesmo e eram muitas. Dentre tarantelas, prelúdios, peças características etc. só se destacavam mesmo pela originalidade e espontaneidade as peças brasileiras, maxixes, tangos, valsas. Não ficou nada escrito dele, com exceção desta Saudosa, valsa lenta de boa têmpera brasileira, melosa e seresteira como o quê, que ele escreveu por minha insistência e me deu[8].
Em anexo jpg. Fonte: Ensaio sobre música Brasileira (2006).
Ao que tudo indica, até o momento, realmente só temos conhecimento desta, graças à persistência de Mário de Andrade. Saudosa recebeu arranjo de Edmilson Capelupi (2020) e a partitura foi impressa pela editora Legato (2021) e recebeu gravação em 2023[9]
BIBLIOGRAFIA
AMARAL, Aracy A. Tarsila, sua obra e seu tempo. São Paulo: Ed.34; Edusp, 2003.
ANDRADE, Mário. Ensaio sobre a música brasileira. Belo Horizonte: Itatiaia, 2006.
TONI, Flávia; PRANDO, Flavia. Música de salão e modernismo: o violão em São Paulo nos idos de 1920. Em:https://anppom.org.br/anais/anaiscongresso_anppom_2022/papers/1028/public/1028-5268-1-PB.pdf
[2] Revista A vida moderna, São Paulo, ano XVI, edição 00391, 23 set. 1920, p. 26.
[3] Revista A Cigarra, São Paulo, ano VIII, n. 174, 1921, p. 91.
[5] A Gazeta de São Paulo, São Paulo, ano XIX, n. 5586, 07 set. 1924, p. 6. Confira a transcrição do texto aqui.
[6] A Gazeta de São Paulo, São Paulo, ano XIX, n. 5586, 07 set. 1924, p. 6.
[7] Ariel Revista de Cultura Musical, São Paulo, ano II, n. 13, 1924, p. 467.
[8] ANDRADE, Mário. Ensaio sobre a música brasileira. Belo Horizonte: Itatiaia, 2006, p. 73.
[9] Colocar o link da gravação.