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João Camarero: o fio da história

Postado em Entrevistas em 13/05/2016

Mês que vem João Camarero completa 26 anos. Mas já consta na ficha técnica de mais de 30 discos, como acompanhante, diretor musical e arranjador. Venceu o Prêmio Mimo Instrumental 2015 e é um dos três mais bem pontuados autores selecionados pelo Concurso Novas 3. Agora lança o primeiro CD solo (Acari Records), com a ideia de, segundo ele, traçar um fio da história do violão brasileiro. De fato, João confirma ser um dos melhores violonistas da nova geração. Virtuose sem excessos, é intérprete sensível e dono de soluções musicais muito felizes. Parte do disco, cujo título leva seu nome,  vale como uma homenagem antecipada ao 70 aniversário de morte de João Pernambuco (1883-1947), ao gravar a pouco lembrada Mimoso e a bela e rara Caminhos de Sertão. E chega aos mais jovens compositores, como Julião Pinheiro. Não sem antes fazer um pequeno retrato do violão nordestino e louvar seus mestres João Lyra e Cristóvão Bastos. Nascido em Ribeirão Preto, em São Paulo, mas criado em Avaré, também no interior paulista, estudou no famoso Conservatório de Tatuí (SP), mas a paixão pelo Rio de Janeiro falou mais alto. Sente-se muito grato pela acolhida que recebeu de Maurício Carrilho, Luciana Rabello e o pessoal da Escola Portátil de Música, onde foi aluno e desde então atua como monitor e professor. No intervalo de uma das aulas em 28 de abril na fabulosa Casa do Choro, o Acervo Violão conversou com João Camarero. 

João Camarero: o fio da história

Ouça faixas selecionadas do CD João Camarero no Acervo Digital do Violão Brasileiro. O disco pode ser adquirido no site e no facebook de João Camarero

  1. Do João Para Pernambuco  (João Lyra)
  2. Fazendo a Cama (Julião Pinheiro)
  3. Mimoso (João Pernambuco)
  4. Descaso (João Lyra)
  5. Passeando (Cristóvão Bastos) – part. Esp. Cristóvão Bastos
  6. Caminhos do Sertão (João Pernambuco)
  7. Caribeana no 3 (Henrique Annes)
  8. Colibri (Armando Neves)
  9. Choro (João dos Santos)
  10. Impressões Sobre uma Despedida (João Camarero)

Acervo Violão - Como surgiu a ideia desse primeiro disco?

João Camarero - O grande culpado desse disco é o João Lyra, que começou a me dar aulas entre o final de 2012 e começo de 2013. Até então minha experiência era a de acompanhador. Não era de solista. Mas João se animou bastante comigo, me convidou para ir à casa dele pra me passar coisas, pra gente tocar.  E passamos a ter uma convivência mais constante. João me botou muito essa pilha de solar. De não deixar passar o momento. Me alertou que profissionalmente era bom também, para quem quer viver de música, além de desenvolver a parte técnica. Daí comecei a gravar esse disco no começo de 2014 e o resultado mostra um retrato do período em que comecei a me dedicar ao violão solo.

Os compositores do Nordeste estão bem presente no disco

Sim. Muito.

Tem duas peças do João Lyra, que é alagoano, mais o pernambucano Henrique Annes, além de duas de João Pernambuco, Mimoso e Caminhos do Sertão. Esta última é bem rara, acho que foi descoberta por Maurício Carrilho.

Isso. Acredito que a minha versão seja a primeira gravação solo de Caminhos do Sertão. A gravação para a caixa Choro Carioca: Músca do Brasil é para dois violões (com Maurício Carrilho e Paulo Aragão). Na verdade, o repertório do meu primeiro CD tem o fio da história dessa linha do violão brasileiro que eu sigo. E que vem essencialmente do Nordeste, com João Pernambuco, com Meira, Henrique Annes, João dos Santos... Por sinal, Henrique Annes forma um elo com esse pessoal do passado do violão brasileiro com o que fazemos hoje. Ele conheceu muita gente. Toca um repertório grande e desconhecido... Espero algum dia fazer um trabalho com Henrique.

No disco você gravou também um tema do Armando Neves, que é teu conterrâneo. Um tema que, por sinal, creio nunca ter ouvido.

Sim. Ele é paulista. Conheci a valsa Colibri de maneira curiosa porque é de uma gravação caseira do Dino solando. O Jacob do Bandolim havia gravado a fita e a enviou para o D´Áuria, em São Paulo. Este pediu que o Dino solasse uma música. Então Jacob solou o Choro Triste, do Aymoré. Em seguida, o Dino tocou Colibri

Este disco é quase todo solo...

Exceto a participação do Cristóvão Bastos na valsa Passeando, que ele compôs na década de 1980. Depois que gravamos, é que ele revelou que Raphael Rabello era a única pessoa que tocava a peça, embora não tenha gravado em disco. É uma valsa virtuosística, moderna, linda.

A faixa que encerra o disco, Impressões Sobre Uma Despedida, é de sua autoria. Você é também um dos vencedores do Concurso Novas 3. Como é teu processo de composição?

Assim como tudo o que faço na música, o processo de compor é também muito intuitivo, sensorial. Procuro ficar livre, apesar da forma do choro estar muito presente. A música Vento Brando, que ganhou o concurso Novas 3, representou um divisor de águas pra mim, porque é uma parceria com o Cristóvão Bastos. Lembro que numa tarde dessas em que a gente se encontra pra tocar, pra conversar, eu toquei essa valsa pra ele, com as ideias que tinha. E ele pegou o outro violão e nós terminamos a música juntos. Depois desse dia eu me senti um compositor. Até então eu ficava escondendo minhas criações, achava tudo muito mais ou menos, não ficava à vontade. Faço questão de falar que Cristóvão Bastos mudou muito a minha vida musical. E sempre fui muito fã dele. Agora assumi esse compromisso de compor. De lá pra cá, muita coisa aconteceu. Eu já tenho cerca de 11 ou 12 músicas em parceria com o Paulo César Pinheiro.

Paulo César Pinheiro  é terrível, né? Para cada parceiro ele tem, no mínimo, umas 60 letras. Mal começou a trabalhar com você e já fez 12. Impressionante.

É. Engraçado que minhas peças não são muito violonísticas. Claro que depois de prontas acabam ficando um pouco. Mas no geral vou fazendo, criando sem me preocupar com o instrumento.

Me fala um pouco da tua formação.

Na minha casa não tem nenhum músico profissional. Meu irmão tocou lá em casa desde sempre. Tinha banda de rock, aquelas coisas. Quando eu tinha uns oito anos estudei um pouco de piano. Mas aos 12 anos, comecei a tocar bateria. Na verdade, eu queria sempre estar com meu irmão mais velho, né? Era engraçado eu, pivete, andando com aqueles roqueiros de 18, 19 anos.

Em que cidade você morava nessa época?

Avaré, interior de São Paulo. Inclusive, eu acho que essa coisa do interior reflete muito no meu jeito de fazer música, que é bem diferente do pessoal da metrópole, de São Paulo, de Brasília, sabe? Eu tenho aquela coisa do varandão, aquela calma, que hoje em dia a moçada da cidade talvez não tenha tanto e é super compreensível, né? O meio em que a pessoa vive interfere na música.

P - E com que idade você começou a estudar violão?

Aos 14 anos. Meu irmão viajou, deixou um violão em casa e eu ficava namorando aquele instrumento. Até que criei coragem de pegar nele. Paralelamente, sempre gostei muito de ler. E lia muito Vinícius de Moraes. Passei a ouvir as coisas dele, a observar as pessoas que ele citava. Pixinguinha... aí eu pensei, pô... quem são esses caras? E comecei a pesquisar. Até que ouvi um disco do Baden, aquele disco Solitude On Guitar. Logo a primeira faixa, Introdução ao Poema dos Olhos da Amada, foi um troço arrebatador na minha vida. Outro troço que definiu também o que iria acontecer na minha vida foram aqueles dois discos do Cartola, o de 1974 e o de 1976, da gravadora Marcus Pereira. Lá ouvi o violão do Dino e fiquei maluco, alucinado, queria saber o que era aquilo. A partir daí comecei a estudar violão 7 cordas lá em Avaré mesmo.

Assim veio a influência do Dino

Sim. Descobri que Dino utilizava cordas de aço. Aí botei corda de aço no meu violão e arrebentei. Tive de trocar o tampo... um fiasco total. E passei alguns anos querendo ser o Dino. Era aquela coisa xiita... tipo, se não tem o Dino não quero nem ouvir. Pesquisava tudo dele.

E as rodas de choro?

Por volta dos 15 anos fui participando de rodas lá em casa porque havia um pessoal de choro em Avaré, que pensava do mesmo jeito que eu. Hoje formamos o Regional Imperial. Com o Lucas Arantes no cavaco, Junior Pita no violão e Rafael Toledo no pandeiro. Naquela fase inicial a gente tirava frases de regional, imitava, que é super importante para o aprendizado. Em paralelo a isso, eu sempre gostei de arranjo, de estudar harmonia e o primeiro trabalho que fiz como diretor musical e arranjador foi um disco chamado Peso é Peso, que a gente gravou ao vivo em 2010. Eu tinha 19 anos. Nesse disco tinha Monarco, Cristina Buarque, Nelson Sargento.

Já começou com chave de ouro

É. Então... foi muito legal. Esse é um outro caminho que, de certa maneira, enveredei e gosto muito de fazer. Escrever, gravar com regional.

Quando você veio morar no Rio?

Olha... eu estudei por um ano no Conservatório de Tatuí, no interior paulista. Depois, no final de 2010, comecei a fazer um bate volta entre São Paulo e Rio. Me mudei mesmo em 2011. Vim pro Rio porque todas as minhas referências estão aqui. Maurício Carrilho, Luciana Rabello, Amélia Rabello, Cristóvão Bastos, João Lyra. Para minha sorte, eles têm a Escola Portátil, a Casa do Choro. São pessoas muito generosas. Quando você se aproxima, eles se abrem. E se percebem que você que está interessado, eles não têm a menor resistência... Devo muito a eles, mesmo. Porque quando eu vim pra cá eu pedi um socorro à Luciana. Falei “Luciana, estou vindo morar no Rio, preciso trabalhar. Me bota pra servir café, qualquer coisa”. E ela me ofereceu para ajudar na Escola Portátil. Aí comecei a trabalhar como monitor de aulas, o que me ajudou muito a montar minha vida no Rio. Entrei na Escola para ter aulas com Joao Lyra. Mas antes já trabalhava como monitor.

Como são as aulas hoje?

Eu participo das aulas de canto da Amélia Rabello. Até entreguei minha turma de violão para ficar nessa aula de canto, que é uma coisa que eu gosto muito de fazer.

Como assim? Você acompanha o canto dos alunos?

Sim. Os alunos aprendem uma música em casa e vêm cantar na aula, o que pra mim é um exercício fantástico porque é um repertório difícil, bonito. Você acompanha um cantor que ainda é estudante. Digo isso porque é natural que o aluno atravesse, mude de tom. Então eu acompanho, por exemplo, Ingênuo, do Pixinguinha, em ré bemol, depois em si, etc. Pra mim, é um exercício constante. E gosto muito de acompanhar. Já como professor de violão, eu me sentia meio aflito. Eu tenho dificuldade de determinar as coisas. O aluno pergunta “o que posso fazer aqui?” Eu digo “pode fazer o que quiser”. E nem sempre o aluno quer uma resposta dessa.

Isso vem da tua formação meio autodidata?

Minha formação é muito mais de ouvir do que de tocar. Essa coisa de solar é relativamente recente. Eu lembro quando era pequeno e tocava de ouvido no piano a lição da professora e ela ficava brava porque, naquele momento, eu não estava lendo a partitura. Era mais o ouvido. Então, sempre tive uma coisa muito sensorial. Acho também perigoso colocar barreira onde não tem. Você precisa oferecer ferramentas para o aluno escolher os caminhos. Mas falar que sou autodidata me parece egoísta, pois aprendo muito, sempre. Tive aulas que me impactaram e mudaram muito minha visão sobre vários aspectos da música quando estudei orquestração com Leandro Braga, que hoje se tornou um grande amigo também. Outro cara que me ensina muita música e com quem tenho o privilégio de conviver, por exemplo, é o Cristóvão Bastos. Isso acontece apesar de eu nunca ter tido aula formal com ele. Aquela coisa de você estar perto, de ver ele fazendo. Já vi alguns músicos perguntando coisas bem técnicas ao Cristóvão sobre arranjo e harmonia. Ele falava que desconhecia aquilo. Mas no fundo ele sabia daquilo, mas sem aqueles nomes. E faz as coisas mais incríveis nos arranjos. Porque são aplicações que não estão no caderno, na teoria. Mas que tornam a música melhor.

Bagagem musical ajuda muito, né?

Sim. É o contrário do cara que, por exemplo, gosta da música do Hermeto Pascoal, começa a estudá-lo e já pula para aqueles sons bem experimentais, sem conhecer ao certo os alicerces daquela música. Daí sai inovando em cima do último trabalho do Hermeto, que não é simples de ouvir, nem simples de fazer. Esse é um exemplo. Ou seja, às vezes o músico que estudar partindo da ponta da cerejinha do bolo e criar em cima, sem o contexto da base. Isso acontece muito hoje.

Verdade. Hermeto tira sons geniais de qualquer objeto, mas é importante também conhecer as melodias líricas dele, como Montreux, forrós como O Ovo e choros como Chorando Pra Ele. Esse papo me lembra o Raphael Rabello, que transformou Lamentos do Morro, do Garoto, num tema apoteótico. E ele tinha bagagem para fazer aquele arranjo tão incrível. Mas agora um monte de gente só quer tocar a peça daquele jeitão do Raphael, o que vira um certo exagero.

Dá pra entender como o Raphael fez aquilo. Concordo a respeito de Lamentos do Morro. Eu acredito que isso acontece porque muita gente não passa por essa escola, assim.... Eu tive privilégio de fazer parte dessa escola do choro, de acompanhar muito, antes de me dedicar ao solo. A moçada hoje tem a vantagem de ter muito acesso a tudo. O próprio Acervo Digital do Violão Brasileiro tem um material fantástico. O que você quer e precisa tem lá mastigadinho, tudo certo, corrigido. É uma ferramenta incrível. Só que tem esses percalços. Temos muita informação, ficamos muito encantados com esse excesso. E o músico iniciante às vezes quer pular muitas etapas, quer alcançar o desempenho de um artista sem observar ao certo que aquele artista estava no ápice da carreira quando fez tal gravação. Claro que a busca pelo melhor é sempre bom. Eu acho super legal tudo isso. Não estou condenando, de jeito nenhum. Mas acredito que é importante também pensar nos alicerces da música e procurar entender o lugar, o momento e a fase do artista.

Você aprende com os mestres. Teve uma formação bem natural, né?

Hoje mesmo eu estava ouvindo um disco do Tom Jobim, vendo umas coisas de arranjo e harmonia. E pensei “como é isso?” Aí eu botei lá o disco, peguei o violão, fiquei quebrando a cabeça pra entender. Depois que eu apreendo, aquele mecanismo entra, sabe? Isso pra mim é um prazer máximo, você destrinchar e absorver aquilo.

 

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