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A música peruana e o legado do violonista Raúl García Zárate - parte 2

Postado em Cartas de amor em 03/12/2018

(Fabiano Borges - Crédito: Elisa Gaivota)

Por Fabiano Borges

Na sequência do artigo publicado em 16 de outubro aqui no Acervo, por ocasião do primeiro aniversário de morte do violonista Raúl García Zárate, trago agora algumas considerações sobre as peculiaridades da música peruana, a partir de minhas experiências como músico naquele país – onde estive diversas vezes a partir de 2006.

Para mim, um dos lugares musicais mais marcantes na capital peruana foi a Escuela Nacional Superior de Folklore José Maria Arguedas (o nome faz referência a um importante escritor, antropólogo e folclorista peruano). Fundada no fim dos anos 1940, a escola mantém a tradição folclórica peruana por intermédio da participação ativa de artistas e pesquisadores culturais.

Em 16 de maio de 2006 (data do meu aniversário, uma feliz coincidência), tive o privilégio de realizar um recital e uma aula aberta nessa importante escola, apresentando repertório brasileiro. Desde então, mantive contato com vários músicos que atuam na instituição e comecei a inserir obras peruanas em meu repertório.

Nas minhas estadas no Peru, conheci inúmeros músicos locais e fui às chamadas “peñas”, a encontros musicais de amigos e festivais. Essa vivência foi imprescindível para a minha formação. Todo aquele universo me possibilitou desenvolver um repertório específico, a partir de arranjos e obras próprias. Esse material está expresso em meus dois álbuns duplos: Sete Cordas e ¡Latinoamérica!.

Também me fez compreender que a riqueza da cultura peruana não se restringia à chamada música andina. Fui capaz de observar, por exemplo, que não era comum um andino tocar cajón, alguém da costa dedicar-se à música andina e assim por diante.

Música peruana e indigenismo

A partir do contato entre a cultura europeia e a cultura nativa, vários gêneros musicais foram estabelecidos na América Latina. De fato, o século 19 foi definidor para muitos países do continente, haja vista o processo de independência e a constituição da música nacional.

Grosso modo, o Peru dispõe de três regiões: serra, selva e costa. A música andina contempla a manifestação cultural da região serrana do país. Portanto, não é a única representação da cultura peruana, mas a sua relevância é um marco indiscutível.

Após a Guerra do Pacífico (1879-1883), inicia-se um período nacionalista no Peru, o qual esteve atrelado ao movimento cultural conhecido como indigenista. O Estado peruano ocupava-se da questão indigenista a ponto de reconhecer a existência das comunidades indígenas desde a Constituição Federal do Peru de 1920.

Esse contexto nacionalista inspirou dois compositores nativos a escreverem as músicas peruanas mais conhecidas mundialmente. Jorge Bravo de Rueda (1895-1940) compôs Vírgenes del Sol (fox incaico) e Daniel Alomía Robles (1871-1942) — em parceria com o escritor Julio Baudouin, responsável pelo livreto — compôs El Cóndor Pasa (zarzuela), ambas obras reconhecidas pelo governo peruano no século 21 como patrimônio cultural da nação.

Muito mais que uma canção

El Cóndor Pasa é conhecida mundialmente como uma canção, principalmente em decorrência da versão da dupla americana Simon & Garfunkel, gravada em 1970. Todavia, trata-se de uma grande zarzuela, ou seja, um gênero lírico-dramático de origem espanhola, cuja estreia ocorreu em 19 de dezembro de 1913 no Teatro Mazzi, em Lima.

Das sete partes musicais que constituem a obra, três foram publicadas pelo autor em um arranjo para piano em 1933. Foram o pasacalle e a kashua da obra, porém, que se tornaram conhecidos por meio de arranjos folclóricos, embora o compositor jamais tenha escrito um arranjo para instrumentos andinos.

Na ocasião do centenário da obra, em 2013, o musicólogo e pesquisador Luis Salazar Mejía fez uma reconstrução da zarzuela, com a colaboração dos músicos Claude Ferrier e Daniel Dorival. A produção foi possível graças a Mario Cerrón Fetta e as gravações realizadas no estúdio do músico Mario Orozco Cáceres, em Lima.

Em 14 de julho de 2013, o jornal peruano El Comercio publicou um artigo de Marcela Robles, escritora e neta do autor de El Cóndor Pasa. O artigo discorre sobre a tentativa bem-sucedida do compositor em representar como o Peru seria musicalmente, além de tratar da celebração do centenário dessa importante obra peruana.

Além de Vírgenes del Sol e El Cóndor Pasa, existem vários temas peruanos representativos e conhecidos fora do país. Nesse sentido, uma das músicas peruanas mais emblemáticas provém da região de Ayacucho, sul do Peru. A música dessa região é predominantemente andina, sendo o huayno o gênero mais representativo.

Vários grupos musicais destacaram-se na interpretação desse tipo de música ao longo do século 20, com destaque para o Trío Ayacucho, em atividade desde os anos de 1950, e o Dúo Hermanos García Zárate, atuante nos anos de 1960 e 1970.

O Brasil e os vizinhos latinos

A expressão “música brasileira” costuma estar apartada da chamada “música latino-americana”. Muitas razões levaram o Brasil a se distanciar culturalmente de seus vizinhos, e não só o idioma. Em primeiro lugar, a União Ibérica não uniformizou as características da colonização espanhola e portuguesa.

Em Raízes do Brasil (1936), Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982) utiliza a metáfora do “semeador” e “ladrilhador” para descrever as diferenças entre essas duas formas de colonização na América. Para o historiador brasileiro, os portugueses seriam mais aventureiros e teriam se estabelecido predominantemente no litoral, a fim de manter a atividade mercantil de escoamento da produção.

Seu escopo consistia em fazer fortuna rapidamente, desprezando o trabalho regular. As suas sementes seriam, por assim dizer, jogadas ao vento. Em contrapartida, os espanhóis seriam entendidos mediante o conceito de “ladrilhador”, em virtude de seu trabalho supostamente mais meticuloso e menos aventureiro.

O povoamento espanhol pelo interior mostrava o seu maior interesse em estabelecer raízes na região colonizada.  Ademais, os portugueses seriam afeitos a uma maior plasticidade social, cuja característica foi também tratada por Gilberto Freyre (1900-1987) em Casa-Grande & Senzala (1933).

De acordo com essa visão, haveria uma modalidade do caráter do português, o que o aproximaria da latinidade. Desse modo, a miscibilidade intensa e o seu caráter impreciso teriam sido fundamentais na colonização.

As fronteiras impostas pela língua

O idioma constitui outro elemento relevante para a compreensão da cultura latina a partir da matriz ibérica. Afora o português e castelhano, é possível observar a conservação de idiomas nativos em vários países latinos. Não obstante, o bilinguismo nunca foi uniforme.

Sérgio Buarque menciona o caso de Curuguaty, região paraguaia na qual o bilinguismo era observado por meio do castelhano e do guarani. Ocorre que esse bilinguismo desaparecia em várias regiões do Paraguai onde o guarani era a língua predominante, restando o espanhol apenas para uma parcela mais culta da sociedade.

(Fabiano Borges em entrevista à Cadena Peruana de Notícias)

Analogamente, há uma população nativa significativa na região andina, a qual mantém línguas tradicionais, sem dispor do conhecimento do castelhano. Sabemos que em muitos países latinos o idioma nativo não se restringiu à comunicação, haja vista que foi uma ferramenta utilizada para a expressão musical.

Enquanto a Música Popular Brasileira (MPB) é cantada predominantemente em português, idiomas nativos são requisitados nas letras da música andina, além do próprio castelhano. Na região de Puno, sul do Peru, é possível escutar música andina cantada em ayamara, embora o bilinguismo musical mais recorrente no Peru ocorra em castelhano e quéchua.

Tal bilinguismo permitiu a utilização de letras de músicas andinas, bem como seus títulos, em espanhol e quéchua. A convivência entre os elementos espanhóis e os nativos foi fundamental para a constituição da música peruana popular.

O violão andino absorveu todo esse bilinguismo, de modo que as características do instrumento, por vezes, fazem alusão ao canto em forma de lamento, ao violino, à percussão e dentre outros instrumentos.

Homenagem a Don Raúl

Mas, voltando ao ponto de partida deste e do artigo anterior, o aniversário de morte de Raúl García Zárate, vale lembrar que também prestei homenagem ao mestre peruano por meio de um vídeo divulgado em meu canal do Youtube.

Na primeira parte do vídeo, interpreto uma marinera do norte do Peru intitulada La Concheperla (Alvaradito), em um espetacular arranjo de Mario Orozco. Na segunda parte, disponibilizo imagens com Federico Tarazona — importante charanguista peruano e afilhado de Raúl García — em minha casa em Brasília.

Na terceira parte do vídeo, disponibilizo um vídeo caseiro no qual toco San Miguel de Piura (marinera norteña) com Raúl García e Mario Orozco. O registro foi feito pelo produtor Mario Cerrón Fetta em um dos saraus realizados na casa de Mario Orozco.

Ajude a preservar a memória da nossa cultura e a riqueza da música brasileira. Faça aqui sua doação.